Patrimônio Arquitetônico de São Carlos
O papel decisivo desempenhado pela cafeicultura na ocupação do território paulista no processo de urbanização das cidades tem sido destacado por inúmeros estudiosos sobre este assunto. No que se refere a São Carlos, não poderia ser diferente. Aliada à expansão cafeeira, a chegada da ferrovia ao município estimulou o processo de urbanização da cidade.
O binômio café e ferrovia, que assegurou o desenrolar do processo de urbanização das cidades paulistas, entre as quais São Carlos se inclui a exemplo de outras cidades do interior, foi assinalado por BORTOLUCCI (1991, p.24):
"Portanto, o café não apenas proporcionou o processo de urbanização das cidades paulistas, como também foi responsável pelo estabelecimento de uma relação de extrema dependência e subordinação entre um e outro. Na verdade, café e ferrovia formaram o binômio que assegurou o desenrolar deste processo. A chegada da ferrovia a São Carlos, em 1884, propiciou a tão necessária rapidez de escoamento da produção e, sem dúvida, o embasamento para o seu crescimento urbano."
BORTOLUCCI (1991, p.15) ainda refere que "durante as últimas décadas do século passado e as primeiras do atual, São Carlos recebeu muitos melhoramentos em construções e serviços urbanos" evidenciando a riqueza que circulava na região e a melhoria das condições da vida urbana. Esta autora também assinala (p.16) que além dos grandes melhoramentos urbanos promovidos pelos fazendeiros de café, a substituição do trabalho escravo pelo assalariado também repercutiu de forma favorável à expansão urbana.
BORTOLUCCI (1991, p.25) assinalou a substituição das construções de taipa pelas de tijolo em São Carlos. Com o tempo passar do tempo, "a cidade de taipa transformou-se na cidade de tijolo e depois na cidade de concreto em menos de um século".
É sobre estas transformações da arquitetura urbana em São Carlos que iremos nos ocupar neste estudo. O ponto de partida foi o trabalho desenvolvido por ROCHA FILHO (1982), que inventariou os bens culturais de São Carlos.
Passados 17 anos da realização deste levantamento, o desenfreado processo de verticalização da zona central da cidade, através da construção de prédios que ocorreram sem a conseqüente preocupação da municipalidade e dos empreendedores imobiliários, fez com que inúmeros imóveis fosse demolidos ou descaracterizados, a despeito dos esforços daqueles que acreditam na importância da preservação do patrimônio histórico. Estes fatos foram apontados por BORTOLUCCI (1991, p.34), ao comentar o processo acelerado de verticalização da zona central do município:
"neste quadro de verticalização sãocarlense, há que se lamentar a demolição irrestrita das sólidas construções do período cafeeiro, salvando-se aquelas poucas que foram alvo de tombamento, ou as que, afortunadamente, ainda estão sob a posse de pessoas que teimosamente têm gosto em preservá-las."
Em São Carlos, verifica-se que nas últimas décadas, o crescimento desordenado da malha urbana aliou-se à baixa prioridade que as questões a respeito da preservação do patrimônio arquitetônico têm na agenda pública, provocando consequências, muitas vezes, irreversíveis para a proteção e defesa destes bens imóveis.
Categorização dos bens imóveis de São Carlos
A área delimitada para este estudo é a mesma adotada por ROCHA FILHO (1982), e corresponde, de um modo geral, àquela ocupada pela cidade no ano de 1940, conforme "planta oficial 1 publicada pelo Instituto Geográfico e Geológico da Secretaria da Agricultura, em observância ao Decreto Lei Nacional n. 311, de 2 de março de 1938."(ROCHA FILHO, 1982, p.4).
Uma planta atual do centro urbano de São Carlos, publicada pela Secretaria Municipal de Esportes, Turismo e Lazer e pela Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico de São Carlos (Planta) apresenta a área delimitada pelo estudo realizado por ROCHA FILHO (1982).
As características dos tipos de edificações mais antigas, que vigoraram durante o período colonial e vem até quase o século XIX, apresentavam aspectos mais ou menos uniforme. Para este autor (1982, p.6), a arquitetura urbana era formada de "casas construídas sobre o alinhamento das vias públicas e as paredes sobre os limites do terreno", sendo que a uniformidade das casas era devida, quase sempre
"(...) à obediência a padrões fixados em Cartas Régias e mesmo em posturas municipais. Embora estas exigências se fizessem apenas para as fachadas voltadas para a rua, regulando as dimensões e o número de aberturas, a altura dos pavimentos e o alinhamento com as edificações vizinhas, essa uniformidade se repete, também, no partido adotado em planta."
ROCHA FILHO (1982, p.6) observava ainda que
" (...) as salas de receber e lojas ficam voltadas para a rua, enquanto os cômodos de estar e locais de trabalho abrem-se para o interior do terreno; entre estes ambientes situam-se as alcovas, destinadas a quartos de dormir e onde dificilmente penetra a luz do dia. A ventilação destas alcovas, contudo, é facilitada pela inexistência de forros ou pela abertura que aparece nas bandeiras das portas."
As casas chamadas de "porta e janela", caracterizavam-se por serem casas de pouca frente e que possuiam apenas uma porta e uma janela para a rua. Por outro lado, as casas chamadas de "meia morada", tinham como característica principal um corredor lateral.
Já as casas de "morada inteira", assim chamadas por terem um corredor central, são expressões correntes na arquitetura colonial brasileira, sendo as casas térreas, em alguns casos, utilizadas para o comércio e pequenas oficinas.
O sobrado também é do período colonial. Sua fundamental diferença o tipo de piso, o assoalho, enquanto que nas outras era de chão batido. O andar superior era destinado à família e o andar térreo era utilizado "como loja, ou deixavam-no para acomodar escravos e animais, ficando às vezes vazio porque era depreciativo habitar aí", como refere ROCHA FILHO (1982, p.8)
Com o fim do período colonial, começam a aparecer novos tipos de residências, como a casa de porão, que aproveitava-se das vantagens do velho sobrado. Para ROCHA FILHO (1982, p.8):
"As casas térreas podem, assim, ter seus pisos assoalhados, representando uma importante melhoria de conforto. Para solucionar o problema de desnível aparece uma pequena escada logo depois da porta de entrada, ao término da qual se abriam as portas das salas ou salões cujas janelas, como nos sobrados, abriam-se sobre a rua sem os inconvenientes dos olhares furtivos."
Os sobrados construídos sobre porões, possuiam, a partir de então, o primeiro pavimento para a utilização social, obrigando a elevar ainda mais a altura do porão para que o mesmo pudesse servir de habitação para os escravos.
A maioria das construções, ainda continuava com os partidos de "porta e janela" de "meia morada" e "morada inteira".
Alterações significativas surgiram a partir de meados do século XIX, aparecendo as "casas de lote", que apresentavam afastamento de uma das divisas laterais, surgindo assim, grandes quintais ou mesmo jardins.
As casas menores também passaram a ter entrada lateral, como refere ROCHA FILHO (1982, p.9):
"a entrada da casa passa a se fazer lateralmente, em geral através de varandas apoiadas em colunas de ferro e que eram alcançadas por meio de caprichosas escadas de mármore. A destinação dos compartimentos continuava mais ou menos a mesma, com a parte fronteira destinada às visitas. Em inúmeros casos, porém, o alpendre iria funcionar como um corredor externo para onde se abriam tanto as portas das salas de visitas quanto as janelas e portas de alguns quartos e mesmo das salas de almoço e das cozinhas."
Em meados do século XX, com muitas casas ainda sendo construídas no alinhamento da rua, começam a aparecer residências urbanas que reuniam as vantagens destas às velhas casas de chácara, que estavam situadas nos bairros de elite.
Estas casas se isolavam em meio a um jardim, sendo esta característica marcante em toda a arquitetura. Como refere ROCHA FILHO (1982, p.10), a partir de então "os recuos do alinhamento passam a ser obrigatórios nas posturas municipais, mesmo para os terrenos de pequenas dimensões".
ROCHA FILHO (1982, p.11) assinala que a partir de 1950 "começam a predominar construções já modernas, fruto do avanço tecnológico e da intensa urbanização que marcou a metade do século", excluindo do levantamento realizado as construções feitas a partir desta época.
Os bens culturais que fizeram parte do levantamento realizado por ROCHA FILHO (1982) foram classificados em 12 tipos, segundo o tipo da fachada. O conjunto destes imóveis totalizava 108 edifícios. Neste levantamento não foram registrados nenhum imóvel como sendo do tipo 6 – "casas de porão, de porta e janela", os de tipo 9 – "casa de sobrado, com porão" e do tipo 12 – "casas construídas depois de 1950".
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Tipo 1 Casa térrea, de porta e janela Av. São Carlos, 2493 e 2495
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Tipo 2 Casa térrea, de meia morada Rua Dona Alexandrina, 504 |
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Tipo 3 Casa térrea, de morada inteira Rua Episcopal, 1835 |
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Tipo 4 Casa térrea, para comércio Rua Nove de Julho, 1261 |
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Tipo 5 Casa de sobrado, com residência em cima Av. São Carlos, 1814 |
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Tipo 7 Casa de porão, de meia morada Rua Episcopal, 1595 |
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Tipo 8 Casa de porão, de morada inteira Rua Conde do Pinhal, 2417 |
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Tipo 10 Casa de porão, com entrada lateral Rua Dona Alexandrina, 1246 |
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Tipo 11 Casa isolada, em meio a jardins Rua Episcopal, 1347 |
No Quadro 1, apresentado a seguir, podemos ver o resultado deste levantamento, relacionando os bens imóveis por tipo e localização, informando ainda a quantidade e a porcentagem correspondente a cada categoria.
Quadro 1 – Síntese do levantamento de bens imóveis, por tipo e localização
Tipo | Quant. |
(%) | Localização (Rua / Número) |
---|---|---|---|
1 - casa térrea, de porta e janela | 5 | 4,63 | Av. São Carlos: 2493, 2495, 2499, 2728 e 2730 |
2 - casa térrea, de meia morada | 1 | 0,93 |
Rua Dona Alexandrina: 504 |
3 - casa térrea, de morada inteira | 9 | 8,33 | Av. São Carlos: 2505 Rua Episcopal: 1835 Rua Nove de Julho:1159, 1269, 1365 e 1567 Rua Dona Alexandrina: 494 e 1296 Rua Conde do Pinhal: 2292 |
4 - casa térrea, para comércio | 3 | 2,77 | Av. São Carlos: 2589 Rua Episcopal: 1309 Rua Nove de Julho: 1261 |
5 – casa de sobrado, com residência em cima | 12 |
11,11 | Av. São Carlos: 1814 e 1903 Conde do Pinhal: 2017 Rua Episcopal: 1107, 1111 e 1421 Rua Nove de Julho: 1227 Rua Treze de Maio: 2056, 2171, 2319 Rua Dona Alexandrina: 1087 Praça Coronel Sales: 2073 |
7 – casa de porão, de meia morada | 4 |
3,70 | Rua Episcopal: 1595 Rua José Bonifácio: 1929 Rua Dona Alexandrina: 398 e 400 |
8 – casa de porão, de morada inteira | 11 | 10,20 | Rua 28 de setembro: 2051 Av. São Carlos: 1807, 1981 e 2227 Praça Santos Dumont (Jesuino de Arruda): 1993 Rua Episcopal: 1289 e 1323 Rua Marechal Deodoro: 1932 Av. Dr. Carlos Botelho: 1732 Rua Treze de Maio: 2180 Rua Conde do Pinhal: 2417 |
10 – casa de porão, com entrada lateral | 53 |
49,07 | Av. São Carlos: 2983, 2911, 2873, 2867, 2738, 2715, 2703, 2603, 2597, 2534, 2433,
2338, 2285, 2251, 2085, 2050 R. Episcopal: 1253, 1393, 1423, 1661, 1691, 1725, 1797, 1803 Rua José Bonifácio: 1753 Avenida Dr. Carlos Botelho:1786 R. 9 de Julho: 1943, 1929, 1913, 1709, 1671, 1497, 1487,1205 Rua Dona Alexandrina: 604, 992, 1246, 1370 e 1386 Rua Treze de Maio: 1902, 1914, 2102, 2164 e 2272 Rua Conde do Pinhal: 2485, 2486, 2352, 2333 e 2187 Rua Major José Inácio: 2206, 1946, 1934 e 1932 |
11 – casa isolada, em meio a jardins | 10 | 9,26 | Av. São Carlos: 1587 Rua Episcopal: 1347 Av. Dr. Carlos Botelho: 1768 Rua 9 de Julho: 1883, 1881, 1827, 1529 e 1515 Rua Dona Alexandrina: 793 Rua Treze de Maio: 2148 |
Total |
108 |
100% |
Os dados do Quadro 1 indicam que entre os imóveis apontados como de interesse para preservação do patrimônio arquitetônico, as "casas de porão, com entrada lateral", constituíam maioria (49,07%), sugerindo que este tipo de construção era muito comum de ser encontrada, conforme categorização de ROCHA FILHO (1982, p.8).
Em segundo lugar aparecem as "casas de sobrado, com residência em cima" (11,11%), indicando que estes imóveis eram utilizados com dupla finalidade: no andar de cima, como residência e no térreo, como loja ou para acomodar escravos e animais (ROCHA FILHO, p.8). De qualquer forma, a incidência deste tipo de moradia sugeria que o desenvolvimento do comércio ocorria no centro urbano da cidade, como indica NEVES (1984, p.20).
Os dados apresentados a seguir, no Quadro 2, relacionam a porcentagem de bens imóveis de acordo com a sua localização, segundo o levantamento realizado por ROCHA FILHO (1982).
Quadro 2 – Bens imóveis caracterizados como de interesse para preservação do patrimônio arquitetônico, de acordo com a localização
Localização (Rua / Número) | Quant. | (%) |
---|---|---|
Avenida São Carlos - 2911, 2983, 2873, 2867, 2738, 2730, 2728, 2715, 2703, 2603, 2597, 2589, 2534, 2505, 2499, 2495, 2493, 2433, 2338, 2285, 2251, 2227, 2085, 2050, 1981, 1903, 1814, 1807, 1587 | 29 | 26,85 |
Rua Nove de Julho: 1943, 1929, 1913, 1883, 1881, 1827, 1671, 1709, 1567, 1529, 1515, 1497, 1487, 1365, 1269, 1261, 1227, 1205, 1159 | 19 | 17,60 |
Rua Episcopal: 1835, 1803, 1797, 1725, 1691, 1661, 1595, 1423, 1421, 1393, 1347, 1323, 1309, 1289, 1253, 1111, 1107 | 17 | 15,74 |
Rua Dona Alexandrina: 1370, 1386, 1296, 1246, 1087, 992, 793, 604, 504, 494, 400, 398. | 12 | 11,11 |
Rua Treze de Maio: 2319, 2272, 2180, 2171, 2164, 2148, 2102, 2056, 1914, 1902 | 10 | 9,26 |
Rua Conde do Pinhal: 2486, 2485, 2417, 2352, 2333, 2292, 2187, 2017 | 8 | 7,41 |
Rua Major José Inácio: 2206, 1946, 1934, 1932 | 4 | 3,70 |
Av. Dr. Carlos Botelho: 1786, 1768, 1732 | 3 | 2,80 |
Rua José Bonifácio: 1825, 1753 | 2 | 1,85 |
Praça Coronel Sales: 2073 | 1 | 0,92 |
Rua Marechal Deodoro: 1932 | 1 | 0,92 |
Praça Santos Dumont (Rua Jesuino de Arruda): 1993 | 1 | 0,92 |
Rua 28 de Setembro: 2051 | 1 | 0,92 |
Total | 108 | 100% |
"Desde a formação da cidade, a avenida São Carlos teve posição de destaque, seja pela maior largura em relação às demais ruais, seja pelas atividades instaladas. O fato é que esta via acobou por definir um eixo ao longo da cidade, de norte a sul, valorizado ainda mais pelas praças localizadas a intervalos mais ou menos regulares (não se sabe se por coincidência ou não)."
Em seguida, aparecem as ruas com maior concentração de bens imóveis indicados para preservação: Nove de Julho (17,6 %), Episcopal (15,74 %), Dona Alexandrina (11,11 %) e Treze de Maio (9,25%) e Conde do Pinhal (7,41%).
Por outro lado, as ruas que apresentaram menor concentração de bens imóveis considerados de interesse para preservação por ROCHA FILHO (1982), foram aquelas localizadas nas ruas Major José Ignácio (3,7%), Marechal Deodoro (2,80%), Av. Dr. Carlos Botelho (2,77%) e José Bonifácio (1,85%). Os bens imóveis localizados nas ruas 28 de Setembro, Praça Coronel Sales e Praça Santos Dumont representaram os menores índices, ou seja, 0,92% do total.